Introdução
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, é um direito fundamental estabelecido para garantir um salário mínimo mensal às pessoas idosas e àquelas com deficiência que comprovem não possuir meios de prover sua própria subsistência ou tê-la provida por sua família. Regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), o BPC tem enfrentado críticas quanto ao critério de renda exigido para sua concessão, atualmente fixado em até 1/4 do salário mínimo nacional vigente per capita familiar.
Este artigo tem como objetivo analisar criticamente esse requisito de renda e demonstrar a necessidade de sua revisão, à luz das diversas tentativas de modificação legislativa, dos entendimentos jurisprudenciais e das discussões doutrinárias sobre o tema.
A Problemática do Critério de Renda Atual
O §3º do art. 20 da LOAS estabelece que, para fins de concessão do BPC, a renda mensal familiar do requerente deve ser inferior a 1/4 do salário mínimo nacional vigente per capita. Esse critério objetivo e restritivo tem sido alvo de diversas críticas, uma vez que acaba por excluir um número significativo de pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica, frustrando o propósito constitucional do benefício.
Conforme apontado pelo deputado Marcos Soares, autor do Projeto de Lei 4161/21, que visa alterar esse critério, “a renda familiar exigida atualmente para se requerer o BPC inviabiliza que esse programa social atinja uma parcela considerável de pessoas que dele necessitam urgentemente”. Ele cita como exemplo o caso de uma família composta por três pessoas, na qual apenas uma trabalha e recebe um salário mínimo, resultando em uma renda per capita superior ao limite estabelecido pela LOAS.
Essa situação vai de encontro à própria finalidade do BPC, que é justamente amparar aquelas pessoas que não possuem condições financeiras de prover seu sustento ou tê-lo provido por sua família. Nesse sentido, o critério de renda acaba por criar uma presunção absoluta de miserabilidade, impedindo que outros fatores sejam considerados na análise da real situação socioeconômica do requerente e de seu núcleo familiar.
Tentativas de Mudança Legislativa
Ao longo dos anos, o Congresso Nacional tem tentado, em diversas ocasiões, ampliar o limite de renda familiar per capita para acesso ao BPC, geralmente propondo a elevação para até 1/2 salário mínimo. No entanto, essas propostas têm enfrentado vetos presidenciais ou acabaram sendo judicializadas.
Mais recentemente, a Lei nº 14.176/2021 estabeleceu uma regra escalonada para permitir, a partir de 2022, a ampliação do teto de renda para até meio salário mínimo, de acordo com condições de vulnerabilidade a serem consideradas, como o grau da deficiência, a dependência de terceiros para atividades básicas e o comprometimento do orçamento familiar com gastos médicos não cobertos pelo SUS.
Essa alteração legislativa representa um avanço, ao reconhecer a necessidade de se adotar critérios mais flexíveis e adequados à realidade das famílias que buscam o amparo do BPC. No entanto, ainda mantém uma limitação específica de renda, o que pode continuar excluindo casos em que a renda supere o novo teto estabelecido, mas nos quais haja comprovada situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Entendimentos Jurisprudenciais
Diante da rigidez do critério de renda previsto na LOAS, o Poder Judiciário tem desempenhado um papel fundamental na efetivação do direito ao BPC, adotando entendimentos que permitem a comprovação da miserabilidade por outros meios, além da renda per capita familiar.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a ADI 1232/DF, declarou a constitucionalidade do §3º do art. 20 da LOAS, mas admitiu, por meio da técnica da interpretação conforme, a possibilidade de se comprovar a miserabilidade por outros meios, não se limitando apenas ao critério objetivo da lei.
Seguindo essa linha, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU) têm consolidado o entendimento de que a renda superior a 1/4 do salário mínimo per capita não impede, por si só, a concessão do BPC, desde que comprovada a miserabilidade do requerente por outras provas.
Nesse sentido, o STJ, no julgamento do REsp 1.112.557/MG, afirmou que “a limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”.
Essa orientação jurisprudencial, embora represente um avanço na interpretação da norma legal, evidencia a necessidade de se rever o critério de renda atualmente previsto, a fim de harmonizá-lo com os preceitos constitucionais e com a realidade socioeconômica das famílias que buscam o amparo do BPC.
Considerações Finais
O critério de renda de até 1/4 do salário mínimo nacional vigente per capita familiar, estabelecido pela LOAS para a concessão do Benefício de Prestação Continuada, tem se mostrado inadequado e excessivamente restritivo, dificultando o acesso a esse direito fundamental por parte daqueles que efetivamente se encontram em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
As diversas tentativas de mudança legislativa, os entendimentos jurisprudenciais que admitem a comprovação da miserabilidade por outros meios e as críticas doutrinárias evidenciam a necessidade premente de se rever esse critério, adequando-o à finalidade constitucional do BPC e às reais condições de vida das famílias que buscam esse amparo assistencial.
Uma revisão nesse sentido poderia adotar critérios mais flexíveis e abrangentes, baseados não apenas na renda, mas também em fatores como gastos com saúde, moradia, alimentação, entre outros, que impactem diretamente a capacidade de subsistência digna do núcleo familiar. Além disso, é fundamental garantir uma análise individualizada de cada caso, levando em consideração as peculiaridades e circunstâncias específicas de cada requerente.
Ao promover essa revisão, estará se fortalecendo o caráter protetivo e inclusivo do BPC, assegurando que esse direito fundamental cumpra seu papel de promoção do bem-estar social e da justiça, conforme preconizado pela Constituição Federal.